Quando eu desci do restaurante, a acender um Laferme com preguiça, caía a tarde de Outono em vitrais ricos pra além das ramarias a despir-se. Passeei algum tempo na avenida, e sem saber porquê, indo ao acaso, fui estacar nesse recanto triste onde mora engaiolada uma águia velha. Há que tempos conheço esse mostrengo, num abandono de asilo, de ar pedinte, com asas que diríeis paralíticas, de um tom coçado e neutro de miséria!… Uma águia isto, este espantalho! A decadência reles destas asas que tanta vez olhei com indiferença, nem eu sei bem porquê, impressionou-me. Um animal de fábula, de mito, um ser que bebeu sol de olhos abertos, curvava as garras frouxas num poleiro, e depois de carnagens e aventuras, encolhido, misérrimo, com fome, acabava a aspirar a um meio bife, como um vadio à porta de um café. Coitada! Teve uma forma assim aquela águia que saboreou Prometeu numa montanha!
Título: Serão Inquieto
Autor: António Patrício
Data Original de Publicação: 1910
Data de Publicação do eBook: 2020
Imagem da Capa: Eagle’s head from life, de John Ruskin
Revisão: Ricardo Lourenço
ISBN: 978-989-8698-65-0
Texto-Fonte: Serão Inquieto. Paris; Lisboa: Livrarias Aillaud & Bertrand, 1920.