Bebeu o copo de Eyup até à última gota. Suspeitava de que as suas atribulações tinham algo que ver com esse plano. Devia ser tão secreto que qualquer pergunta sobre ele levantava suspeitas sobre as intenções de quem o questionasse. Tinha de explicar a um superior hierárquico que tudo não havia passado de um acaso, que nunca quisera saber mais do que o devido, mais do que a tradução dos termos técnicos de que estava encarregada. Queria acabar de vez com qualquer suspeita que a pudesse remeter para a categoria A20 ou coisa parecida. Pensou que seria bom telefonar a Isabel e perguntar-lhe o que achava. Mas logo desistiu da ideia porque sabia que Isabel detestava que lhe ligassem para casa. Ligou de novo a TV, desesperada por não saber como acalmar-se. Passavam imagens da ilha de Malta: no porto, estava ancorada uma massa gigantesca de metal cinzento; era o Fortaleza Europa. Dizia a locutora que ficaria ali estacionado para proteger a Europa e os países amigos do Norte de África das ameaças externas. «Que ameaças?», perguntou-se Maria. Toda a África era um caos de pobreza, fome, seca, sida e aquela nova doença, a siga ou síndrome da genética alterada. A sul do Sara não havia, portanto, inimigos. Do outro lado do oceano, a América era um país que se arrastava com uma inflação de quinhentos por cento desde que Oscar Hijuelos fora eleito presidente vitalício de um país com um terço da população vivendo em «prisões territoriais», e o Mercado Comum das Américas era o maior desastre financeiro da História Humana, com os fundos desviados para as multinacionais das drogas sintéticas. Pelo menos era o que se dizia na EuroHaus. E a Leste, outro panorama desolador: as regiões autónomas associadas da Bielorússia e da Ucrânia mantinham ao largo as hordas de russos famintos, enquanto a Turquia aguentava os tártaros, os iranianos, os turcomenos e quejandos e, pelo que Eyup dissera, Israel aguentava os árabes. O resto era lá longe: de facto, o Japão era o grande rival mundial, especialmente depois da associação com a Coreia, mas as relações entre a União e o Império do Sol Nascente, embora ferozmente competitivas no plano económico, baseavam-se num entendimento único: manter a explosiva China no limiar entre o consolo e a pobreza.
A locutora dizia ainda que a ilha de Malta estava em festa, acolhendo os marinheiros das Forças Navais Europeias preparando-se para receber a caravela Vasco da Gama, a primeira peça para o Museu das Trocas Norte-Sul, a instalar em La Valetta.
Maria folheou o artigo da Futuro para se distrair ainda mais. Já se sentia tonta por causa do álcool, enjoada dos barcos, deprimida com os seus problemas, ansiosa com o dia seguinte. E carente. Só teve energia para ler a cacha da sinopse em português:
«Em que pé se encontram os esforços de colonização do satélite descoberto em 2015? Ao que tudo indica, é possível seres humanos sobreviverem naquele corpo celeste, em ambientes de estufa — as bioesferas. Estas foram já experimentadas e o seu fabrico pela indústria dos novos poliuretanos do Baden-Wurtenberg só aguarda a autorização do EuroGov. Porque tarda a decisão política? Porque não nos adiantamos aos japoneses? Na colonização pode estar o futuro da população excedentária das zonas periféricas. Ou será que a brandura dos nossos políticos espera até que os japoneses colonizem o satélite com os excedentes da sua periferia — indianos, vietnamitas, chineses? Impõe-se uma decisão que…»
Maria sentiu os olhos pesados. Ainda lhe pareceu que tudo aquilo encaixava algures nos seus pensamentos das últimas horas, mas adormeceu ali mesmo, no sofá.
Título: EuroNovela
Autor: Miguel Vale de Almeida
Data Original de Publicação: 1998
Data de Publicação do eBook: 2018
Capa: Ana Ferreira
Revisão: Ricardo Lourenço e Anabela Fino
ISBN: 978-989-8698-52-0