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Contos — Álvaro do Carvalhal

Quanto a mim porém, nas obras, não sei se insensatas, cuja fisionomia e carácter, invadindo os domínios do extraordinário, se possam aproximar do espécimen, que reverente terei a honra de oferecer ao público, não será para verberar-se qualquer desapego das regras, pois que um povo como o que se agrupa na tela, que vai ser exposta, um povo de monstros, de esfinges, de dragos, de mastodontes, de disformidades fabulosas deve considerar-se oriundo antes, que da natureza, de algum derrocado mausoléu egipcíaco, ou dos confusos bordados de alguma chinesa tapeçaria.


Outra particularidade, que convém notar. Os quadros insólitos e lôbregos, tais como a aspiração dos meus, requerem muita parcimónia de colorido: árida e descarnada a natureza como esqueletos de fresco arrancados à terra húmida. A abstracção de luz é a condição de sua existência. E forçoso se torna que as imagens sejam como sombras misteriosas. Um conto de Hoffmann, uma história de Poe, uma paisagem de Salvador Rosa longe de adoptarem a profusão luxuriosa de esmaltadas cores, como sucede nas composições risonhas e graciosas, quase exclusivamente se compõem de espessas neblinas. Em face da luz não ousara o vampiro profanar os que dormem na jazida eterna, nem a feroz feiticeira viera com palavras mágicas urdir infames sortilégios na poeira virgem das campas das donzelas, ou recobrir as carnes, as ossadas esquecidas para nas horas de encantamento levar ao lado da infiel amante o espectro do amante injuriado nas ainda quentes cinzas. O sobrenatural tem esse modo estranho de revelar-se, tem até seu idioma especial.


Feliz seria eu se esta última consideração absolvesse ao menos as culpas, que pesam sobre um estilo desataviado e esconso, e sobre a pobreza da dicção e de matiz, que me envergonham e me intimidam.


Não escolherei todavia, é justo que afinal se declare, não escolherei entre a benevolência, a severidade, a aspereza, e o menosprezo da crítica. Com o chapéu na mão estendido à semelhança do mendigo, que ao virar de uma rua nos importuna, não peço como ele uma esmola, peço que me deixem passar. Todo o tratamento, desdenhoso, cortês ou rude, será bem-vindo, que tudo comporta a índole da oferta, e o ânimo do oferente, que adula a divindade, enquanto nutre a heresia no coração.


Porém ou me ilude a presunção, ou em parte disso, que vai provavelmente ler-se, avulta ao menos o mérito nada comum das coisas sumamente originais, sendo portanto, a meu ver, por esse lado só comparável à ousadia do pensamento, que lhe deu origem.

Título: Contos
Autor: Álvaro do Carvalhal
Data Original de Publicação: 1868
Data de Publicação do eBook: 2021
Imagem da Capa: Lucretia, de Guido Reni
Revisão: Ricardo Lourenço
ISBN: 978-989-8698-68-1
Texto-Fonte: Contos. Porto: Livr. Central de J. E. da Costa Mesquita; Rio de Janeiro: Agostinho Gonçalves Guimarães, 1876.

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