Não tinha a menor ideia do que fosse ter mãe ou ter amigas. No seu contacto com a gente, entrevira apenas o tenebroso fundo de bestialidade que referve em cada homem, com um fragor de luxúria cruel. Vivera sempre em si própria, sem a reminiscência dum carinho que alma piedosa lhe houvesse prodigalizado. Quantos beijos deixara roubar aos moços do cemitério e quantas palavras tinha merecido aos gatos-pingados, todas vinham ervadas da mesma ideia e do mesmo intento. E assim crescera naquela incultura de espírito sem guia, sentindo dentro avigorar-se-lhe apenas uma tendência — a da cadela fértil, que vai entregar-se. Através da sensação rudemente nascida olhara o mundo, esfaimada e torpe como se fora um verme descomunal das sepulturas, incapaz, pelos desolados cenários que tinha contemplado nos seus dias de criança, de dar acesso na sua alma às multíplices emoções e susceptibilidades histéricas que fazem da mulher o precioso receptor das coisas mais subtis que a língua não exprime e os olhos mal sabem formular. (…) Foi o tio Farrusco quem cobriu de terra, sem comoção nem saudade, o corpo, espedaçado pelo seu escalpelo, da rapariga corroída de podridões sinistras, abandonada do berço ao túmulo, e pasto unicamente de desejos infames e de desvairamentos vis.
Título: A Ruiva
Autor: Fialho de Almeida
Data Original de Publicação: 1881
Data de Publicação do eBook: 2014
Capa: Ana Ferreira
Imagem da Capa: Death and the Maiden, de Egon Schiele
Revisão: Miriam Santos, Marisa Vinagre, Ricardo Barradas e Ricardo Lourenço
ISBN: 978-989-8698-19-3