Gil Vicente, o autor,
me fez seu embaixador,
mas eu tenho na memória
que pera tam alta história
naceu mui baixo doutor.Creo que é da Pederneira,
neto dum tamborileiro,
sua mãe era parteira
e seu pai era albardeiro.
E per razão
ele foi já tecelão
destas mantas d’Alentejo,
e sempre o vi e vejo
sem ter arte nem feição.E quer-se o demo meter,
o tecelão das aranhas,
a trovar e escrever
as portuguesas façanhas,
que só Deos sabe entender.
Doutro cabo,
dizem que achou o diabo
em figura de donzela
e ele namorou-se dela,
porém ela
era diabo encantado.Levou-o a uns arvoredos,
vai a dama, assi a furto,
e alevanta os cotovelos
e levou-o polos cabelos
e fez-lhe o pescoço curto.
E meteu-o logo ess’hora,
sem lhe valerem seus gritos,
onde a Sebila mora,
encantada encantadora,
antre os malinos espritos.E ali foi ensinado
sete anos e mais um dia,
e da Sebila enformado
dos segredos que sabia
do antigo tempo passado.
Em especial,
o antigo de Portugal:
Lusitânia que cousa era
e o seu original,
e por cousa mui severa
vo-lo quer representar.
Título: Quadros Vicentinos: Teatro de Gil Vicente
Autor: Gil Vicente
Data de Publicação do eBook: 2024
Imagem da Capa: Frontispício do Auto da Barca do Inferno.
Revisão: Ricardo Lourenço e Miriam Santos Freire
ISBN: 978-989-8698-81-0
Texto-Fonte: Centro de Estudos de Teatro, Teatro de Autores Portugueses do Séc. XVI – Base de dados textual [on-line] (http://www.cet-e-quinhentos.com).