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«Porquê Ler os Clássicos?» – Entrevista a Safaa Dib

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Porque Ler os Clássicos

Porquê ler os clássicos da literatura portuguesa?
Os clássicos são Arte. E já Eça dizia que «a Arte é a história da alma e foi isso que deu a Shakespeare a supremacia na Arte. Foi o maior criador de almas». Ler um clássico é abrir uma janela para a alma coletiva que domina a época retratada no livro e acredito que podemos aprender muito com isso.
 
A definição de clássico está longe de ser consensual. Afinal, o que torna uma obra literária um clássico?
Acredito que terá que ser uma combinação entre a tal «história da alma» e a introdução de elementos inovadores que permitam criar uma literatura nunca vista até então. O autor terá que ser não só capaz de captar o zeitgeist, mas também de atravessar para novos territórios estilísticos e não ter medo de quebrar com a tradição. Quanto mais única e impactante a obra, mais capaz de resistir ao teste do tempo.
 
Eça e Pessoa continuam a ser bastante lidos, mas nem todos tiveram tal sorte. Que autor português considera que foi imerecidamente votado ao esquecimento?
Quando era mais nova, talvez uns 12 anos, descobri por acidente o manual escolar de Português do 12.º ano do meu irmão mais velho e passava parte do meu tempo fascinada a folhear o livro e a descobrir a literatura portuguesa do séc. XIX e XX. Lia os excertos, as biografias e as questões colocadas aos alunos. Tenho a certeza que estudei aquele manual muito mais do que o meu irmão. Foi assim que iniciei as minhas leituras de Júlio Dinis, António Patrício, Miguel Torga, Vergílio Ferreira (pedia à minha mãe para me comprar os livros com base no que aprendia e gostava mais de ler no manual). Quando finalmente cheguei ao meu 12.º ano, já nada era novidade para mim, mas reconheci como alguns autores tinham lentamente desaparecido ou minguado em importância como José Rodrigues Miguéis, Júlio Dinis, Camilo Pessanha, Raul Brandão (que noto ter tido um recente ressurgimento). A memória literária é cada vez mais curta numa sociedade que atualmente privilegia as próximas grandes descobertas literárias de natureza fugaz, mas também julgo que o gosto e o contexto de cada época determinam muito quem é esquecido e quem ainda é lembrado. E depois temos o outro lado da moeda, os autores sobrestimados que já deviam ter sido esquecidos mas ainda teimam.
 
«Prognósticos só no final do jogo», mas que obra contemporânea lhe parece capaz de vencer o teste do tempo e vir a integrar o cânone literário português?
Tivemos uma extraordinária produção no romance e poesia ao longo dos séc. XIX e XX mas, pelo que vejo, tenho dificuldades em acreditar que iremos alcançar esse nível nas primeiras décadas do séc. XXI e a forma como o meio editorial internacional e português agora trabalha dificilmente permite aos autores manter qualidade e consistência de obra para obra. Há uma pressão muito maior no autor hoje em dia.
 
No nosso país os géneros englobados na chamada Ficção Especulativa continuam ainda hoje a ser considerados como menores. Parece existir uma tendência para ignorar as incursões que alguns dos principais autores portugueses dos sécs. XIX e XX fizeram nesses géneros, como a Ficção Científica, o Fantástico ou o Gótico. Haverá forma de dissipar este preconceito, ou continuará o cânone a ser um panteão acessível apenas à Ficção Literária?
Infelizmente, em Portugal ignoram-se as incursões desses autores portugueses no género fantástico porque, a meu ver, a literatura que operava sob o signo do maravilhoso, do onírico e do sobrenatural não era central na produção portuguesa. Eça e outros fizeram algumas notáveis intervenções no fantástico, mas as suas obras-primas serão sempre as que consagraram o realismo. Fernando Ribeiro de Mello viu potencial suficiente para criar a famosa Antologia do Conto Fantástico Português, com uma seleção de grandes autores, mas faltou muito mais por explorar e uma mente mais aberta para as possibilidades literárias deste género. De qualquer modo, hoje o fantástico tem uma conotação muito específica e impõe-se o modelo anglo-americano com categorias e padrões que são copiados até à exaustão. Por cá, faltam mais vozes originais, faltam mais autores com verdadeira vocação para escrever neste género que, quando mal feito, dá resultados desastrosos. Só com mais produção literária autêntica poderemos pensar em inserir o fantástico português no cânone.

Safaa Dib manifestou sempre, desde muito nova, uma paixão por livros que a levou a optar por uma licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas na Faculdade de Letras de Lisboa. Após dar os primeiros passos no mundo editorial na área da tradução e revisão, foi só em 2008 que se dedicou a tempo inteiro à edição ao ingressar na editora Saída de Emergência onde se mantém como coordenadora editorial. Desde 2010, é editora da revista Bang! em Portugal e, desde 2013, da revista Bang! no Brasil. É também responsável de conteúdos na plataforma digital da revista Bang!. Foi membro do júri da 7.ª edição do MOTELx – Festival Internacional de Cinema de Terror em Lisboa e é membro do júri do Prémio Bang! 2014 de literatura fantástica. Vive em Lisboa, onde faz parte da organização da convenção anual do Fórum Fantástico.

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