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«Porquê Ler os Clássicos?» – Entrevista a Luís Filipe Silva

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Porque Ler os Clássicos

Porquê ler os clássicos da literatura portuguesa?
Para responder devidamente, é preciso antes desmontar as falácias existentes na expressão «ler clássicos portugueses».
 
Começando pelo termo «clássico», que o senso-comum designaria como «coisa antiga que resiste à tirania do tempo e é lembrada na actualidade», ou, reduzido ao essencial, «coisa antiga», mas que o uso (e abuso) do termo por leigos, marketeers e meios de comunicação (os piores de todos a gerar confusão) tem aplicado a obras publicadas nas últimas décadas, ou até nos últimos anos. Assim se criam «clássicos» como o «Neuromante» [1984], o «Memorial do Convento» [1982], o «Geração X» [1991] — sem falar nos «clássicos instantâneos» instituídos por certos críticos literários, que, como se providos de direito dinástico, logo se tornam mal nascem…
 
Excepções à parte, a maior falácia no termo «clássico» é a de assumir-se que a fuga ao oblívio se deve (apenas) ao mérito próprio, a uma qualquer qualidade universalmente reconhecida e intrínseca da obra, esquecendo-se ou ignorando-se que também aqui há uma escolha activa, perpetuada, consentida e nem sempre devidamente questionada por quem lhe atribui tal epíteto. Um romance clássico não é só aquele que despertou o interesse dos leitores na época em que foi criado — e por vezes nem por isso, veja-se o caso da obra de Pessoa, praticamente ignorada durante a vida do poeta — mas que veio acumulando ao longo dos anos um atrito de investigações académicas, ou que foi surgindo associado a argumentos de identidade nacional (como a propaganda oficial dos Estados, mas não só), ou que foi promovido com entusiasmo por uma figura pública contemporânea, ou que surgiu associado a uma outra obra mais popular… a oportunidade (que é como quem diz, a sorte) tem um papel muito activo na construção do cânone.
 
«Ler» é outra falácia. Assumimos que os ditos clássicos sejam lidos, mas isso não é necessariamente verdade. Lêem os alunos as obras inseridas num Plano Nacional de Leitura? Ou lerão antes excertos, resumos, meras explicações na internet? Será que passam da contracapa? Já agora, será que os próprios professores os lêem? Os pais? É bem possível que o conhecimento dos clássicos surja primeiro ou apenas pelas adaptações infantis ou de banda desenhada…
 
Se sairmos do meio lusitano, avesso a versões cinematográficas das obras nacionais, e colocarmos igual questão para os clássicos da cultura ocidental, quantas pessoas, realmente, leram (sequer traduções de) a «Alice no País das Maravilhas», o «Frankenstein», a «Guerra dos Mundos», a «Odisseia»? Quantos não conhecerão as histórias apenas a partir de um blockbuster recente ou de uma série da Fox? A transposição semiótica é outra das estratégias de perpetuação dos clássicos, e talvez a mais importante — neste caso, para formas de divulgação apetecíveis às audiências modernas.
 
E por fim, a própria definição de «portugueses», que mais uma vez o senso-comum delimitaria em termos de espaço e tempo linguísticos, e assim rejeitaria os efeitos secundários da globalização e da integração europeia que já mudaram as regras do jogo e se insurgem com enorme velocidade sobre as novas gerações como um verdadeiro tsunami cultural. Ainda não estamos nessa fase, mas é razoável supor que os ventos da progressiva integração cheguem aos currículos escolares e se estabeleça como obrigatório o estudo dos clássicos europeus, de Homero a Sartre, e que para estes surjam traduções oficiais ao abrigo de um programa comum. É razoável supor que, com o crescente peso da imigração em território português, as gerações futuras queiram ver representados autores (russos, romenos, ucranianos) da terra dos avós. O que é ser-se «português», nesta realidade? Um acidente de percurso histórico, um cidadão de uma cultura autónoma, ou apenas mais um sabor de «europeu»?
 
Tanta retórica e ainda não abordei a questão. Mas a resposta é fácil: sim, é preciso ler os clássicos portugueses, na forma escrita e com o texto integral. É preciso lê-los porque influenciaram obras posteriores, porque fazem parte do discurso literário da língua portuguesa. É preciso lê-los porque é preciso ler: assidua e diversificadamente. Depois de ler os clássicos, procurar entender o que tinham de diferente, ler sobre a época, ler outras obras, de épocas anteriores e de épocas seguintes. Ler constantemente treina o espírito, forma opiniões e desmonta-as, e não menos importante, é a única forma de poder resgatar aquelas obras injustamente esquecidas e defender com conhecimento de causa a sua inclusão no rol dos clássicos.
 
A definição de clássico está longe de ser consensual. Afinal, o que torna uma obra literária um clássico?
Discordaria em parte da pergunta. Penso que existe um consenso mínimo na escolha dos clássicos, ou pelo menos, uma aceitação tácita que só incomodará as universidades de Letras. Para a grande maioria, que nenhum interesse encontra neste debate, ouvir os títulos de certos livros vai certamente despertar-lhes a curiosidade. É assim que chegam aos «Maias», ao «Primo Basílio», mas talvez já não cheguem à «Relíquia»…
 
Temos assim duas forças que ajudam o livro a tornar-se lembrado para a posteridade: este consenso colectivo e a acumulação de estudos literários (a investigação académica equipara-se a um buraco negro: quanto maior o volume de páginas dedicadas a determinada obra ou autor, mais páginas serão atraídas e acumuladas nas décadas seguintes, num ciclo infinito…).
 
Mas uma força, espero, tem de centrar-se na obra propriamente dita: tecida na linguagem da época, retrato dos esplendores e misérias do ser humano, testemunho de uma época, de um costume, de uma memória, de uma promessa, de um anseio. A obra nasce menina, cresce com a geração que lhe deu vida, torna-se avó e depois envelhece nas prateleiras e nas mesas de estudo da primária e do secundário, lida agora por obrigação e pouca satisfação. Faz parte da natureza humana procurarmos na boca dos velhos as janelas para tempos que já não são. Os textos velhos, os autores mortos, os romances que descrevem países que mudaram de fronteiras e de nome.
 
Grande desafio se coloca aqui à literatura de género: por muito que ufane o peito e se diga metáfora dos dias presentes, falta-lhe a autoridade da retrospectiva, a perspicácia da introspecção e a minúcia do repórter. Vamos encontrá-la junto à janela, a olhar para fora e a suspirar pelos caminhos, pelos prados, pela silhueta da cidade que lá fora percebe, a seguir o percurso dos comboios e aviões, a pensar no universo enquanto se entedia até ao tutano com as conversas e andanças de ocasião que acontecem dentro de casa entre familiares e conhecidos. Dirão os apreciadores: é ali que quero estar, à janela. Mas esta escolha — pois é uma escolha — tem de ser feita na plena consciência de que, às gerações vindouras, interessará menos conhecer os anseios dessa criança e mais as preocupações dos adultos. Quem espreita pela janela não é capaz de testemunhar os movimentos do seu próprio tempo, não é capaz de escrever sobre eles, e como tal não se espante se a obra for ignorada pelo tempo.
 
Com excepção de alguns, obviamente. Há sempre excepções. Neste caso, dos capazes de dissecar o mundano até apenas restar osso numa mesa, e tendões na outra — ou seja, o que nos sustenta e o que nos faz mover. Dissecar com o escalpelo do Fantástico, bem entendido. Serão esses um Ballard, uma Shirley Jackson, um David Mitchell, um Murakami, um Borges, um (pasme-se!) Saramago. Gostemos ou não deles, são os mais bem posicionados na corrida para eternizar as técnicas do género a que hoje adoramos, convidados a entrar na ala dos (tais) clássicos.
 
Eça e Pessoa continuam a ser bastante lidos, mas nem todos tiveram tal sorte. Que autor português considera que foi imerecidamente votado ao esquecimento?
Bem, há vários graus de esquecimento. O mais habitual acontece quando o autor passa para o Grande Nada e grande nada é aquilo em que se torna a reedição das suas obras (vide a falta de Fernando Namora e do Asimov nas livrarias portuguesas). Quanto aos outros, os assim-assim, que não desaparecem de todo mas também não emitem calor, posso mencionar os nomes de Mário-Henrique Leiria, Cesariny, João Aguiar, João de Melo, que, não se encontrando na ribalta, vão sendo lembrados pela maestria do uso da língua. Mas infelizmente, e pelo menos para mim, são excepção aqueles escritores portugueses de que se conseguem retirar observações pertinentes e originais sobre o ser humano em acção, e que não usam o acto de escrever como a) um campo de provas para metáforas extenuadas nem b) uma colagem inconsequente e mal-formada de pensamentos. São poucos os que transformam as páginas em palcos de paixão, para neles fazer digladiar diálogos com imagética, com ritmo narrativo, com maturidade literária. Quem o conseguiu teve reconhecimento. Pessoa é Pessoa por mérito próprio — ainda que Pessoa tenha precisado da voz do Gaspar Simões. Não vejo tal paixão em certos jovens autores. Estão preocupados em pintar cenários e dispor figuras e depois empurrar estas por aqueles como se a vida de mero trilho de obstáculos se tratasse, sem a preocupação de fazê-las crescer e no processo fazer-nos aprender. Eis a razão tramada pela qual os videojogos não são a mesma coisa que os livros…
 
Talvez maior pecado seja dar mérito a quem não o merece? Não vamos por aí, teriamos matéria para meses…
 
Fico-me pela dedicatória aos pioneiros, grandes desconhecidos e pouco esclarecidos, da nossa ficção científica, que entre escritos e traduções, boas ou más, propositada ou inadvertidamente, foram edificando as estruturas ao longo do passado século (Amílcar de Mascarenhas, Luis de Mesquita, Luis Campos, Roussado Pinto, Romeu de Melo, Natália Correia, entre muitos outros). E uma evocação pessoal aos ex-jovens do ex-DN Jovem que não alimentaram a chama então ardente e hoje atendem clientes, enviam memorandos, assinam uns orçamentos e vão para a cama sem escrever uma única frase literária.
 
«Prognósticos só no final do jogo», mas que obra contemporânea lhe parece capaz de vencer o teste do tempo e vir a integrar o cânone literário português?
Imaginar o futuro implica antes de mais abrir os olhos para as convicções subjacentes que ditam as escolhas e actos do presente. Esta é a primeira grande lição da FC. Não devemos acreditar na imutabilidade dos valores quando a História nos ensina o contrário. A caricatura é o que mais se aproxima da forma como as gerações seguintes nos verão — pelos exageros, pelas deformações e pelos enganos — e não quaisquer perspectivas consensuais e benevolentes de quem está hoje do lado de dentro.
 
Neste sentido, a resposta-padrão aos autores que vão perdurar, e que inclui nomes como Tavares, Tordo, Peixoto, Real, Couto, Agualusa, representa um rol cheio de problemas à partida: são todos homens, brancos e herdeiros do mesmo pensamento e educação, não obstante cada qual retratar perspectivas diferentes e pessoais, que vão da regional (Peixoto) à colonial (Couto, Agualusa) à globalizante (Tordo) à quasi-abstracta (Tavares) à histórica (Real).
 
Como vimos acima, eleger o cânone é também, e em grande medida, uma visão que se impõe, feita por um discurso dominante. Voltamos às grandes questões: quem escolherá a lista do Plano Nacional de Leitura daqui a vinte, trinta anos? Quantas mulheres em cargos de poder efectivo, quantos filhos de imigrantes, quantos não-brancos e não-católicos? Quantos incorporando próteses biónicas, transplantes clonados, regimes de extensão vital que, naturalmente, irão albergar visões antagónicas à postura anti-tecnológica de muitos dos nossos actuais escritores? Quantos, afinal, terão sequer aprendido o português como primeira língua materna?
 
Portugal tem-se mantido intocável em fronteiras, composição e identidade desde a fundação, e quando se misturou, ou o fez com estranhos mas por vontade sua (Descobrimentos) ou, não sendo bem sua vontade, o fez com o vizinho do lado (reinado dos Filipes) — opções, no entanto, conservadoras e controladas. Mas após mil anos está finalmente a chegar uma mudança, e com esta uma colonização inusitada que já começou a doer. Daí que seja mais difícil, a meu ver, extrapolar os próximos cem anos do que foi aos autores de 1900 imaginar o país na viragem do século seguinte.
 
A Ficção Científica lembra-nos: ask the next question. E só por isso, vou indicar uma autora de futuro: Margarida Rebelo Pinto. Porquê? Por ser um achado arqueológico para as próximas gerações: retrato de uma era em que a identidade feminina se definia essencialmente pela alteridade, pela aparência social, pela erosão do íntimo em detrimento de um perfil simplificado e facilmente reconhecível: «como encontrar o melhor parceiro sexual e como mantê-lo, que roupa produzirá maior efeito nos outros, que amizades me tornarão conceituada, a que festas e acontecimentos devo participar para estar na boca do mundo, que opiniões são as mais aceites, que interesses me aproximam da média», etc.
 
Imagino os alunos nas unidades educativas regionais da década de 2140, crescendo numa sociedade pan-europeia, pós-patriarcal, pós-capitalista, anti-patrimonial, pró-ecológica, avaliados pela capacidade de contribuir com expressões inovadoras e individualistas, e sensibilizados pelos pais e avós (que atravessaram o fim do petróleo e a dolorosa transição para outro sistema energético) ao custo ambiental do uso impróprio dos meios de produção, a contorcerem-se de pavor ante aqueles textos…
 
Em 2010 publicou um artigo denominado «Existem Clássicos na FC Portuguesa», onde questionou a viabilidade (e a relevância) de uma possível recuperação de clássicos de FC portuguesa, artigo esse que despoletou até a primeira discussão que, anos depois, viria a dar origem ao Projecto Adamastor. Será que existe suficiente interesse por parte dos leitores para justificar esse trabalho, ou até mesmo a publicação de uma possível «História da FC em Portugal», dada a falta de investigação académica acerca do tema?
Bem, se vamos estar à espera do interesse dos leitores, não iremos a parte alguma. É difícil alguém ansiar pelo que não conhece, pelo que nunca desenvolveu curiosidade. Se nos queixamos de ver as edições de literatura popular a ser denegridas perante as de literatura «séria» nos escaparates, pior fado tem o que já saiu destes escaparates e vagou da memória. Não se ensinam, mal se recordam, raramente se reeditam os romances de antanho — os policiais, as cowboiadas, os casos amorosos, as aventuras, e sim, a Ficção Científica, dos anos 20, 30, 40, 50, 60… de todas essas décadas que antecederam a nossa presente existência. Fazê-lo implicaria um viragem absoluta dos valores culturais que seguimos. Já o Eça denunciava a lusa aspiração de tornar Lisboa um «arrondissement» parisiense (depois a hegemonia mudou e passámos a candidatar-nos a distrito nova-iorquino). Ajoelhamo-nos no genuflexório do que é estrangeiro, do Outro. Se a literatura popular é tratada como pechisbeque, pior tratados são os autores nacionais que a produzem, como pechisbeques baratos (até a desgraça tem a sua luta de classes). Ninguém recupera o que não tem valor: deita-se fora e compra-se outra coisa, mais moderna e igualmente descartável. Que é como quem diz: escrever o género popular em Portugal é partir sempre do zero.
 
Se é verdade para os leitores, tanto o é para os autores, que, recorde-se, começaram por ser leitores. Não existe cânone para a literatura nacional de Ficção Cientifica, nem sequer do passado recente. Não temos obras de charneira que tenham marcado esta e aquela geração, não existe sequer um corpo de referências recuperado em textos posteriores, meta-literários e pós-modernos. Toda (a sublinhado, a itálico e a negrito), repito, toda a educação de género no leitor português é feita com base em autores (e livros) estrangeiros.
 
Isto podemos afirmar, colectivamente e com firmeza, a respeito do cruzamento entre a cultura portuguesa e a Ficção Científica: pela positiva, é possível, existe, mas pela negativa, dá lugar a uma prole estéril. A mulas.
 
Não é obrigatório que assim seja. Mas assim tem sido pois é o caminho mais fácil. É mais saboroso o pulp norte-americano, a escorrer gordura e açúcar, do que as histórias lusas, amadoras, pouco trabalhadas e castradas pelas duas grandes censuras da nossa História: a (que foi) do Estado e da Igreja e a (que sempre será) do nosso modo lusitano de ser. É também mais fácil pegar e traduzir artigos estrangeiros sobre a «história da FC» contada ao jeito norte-americano ou europeu e reproduzi-los em blogues, enciclopédias e salas de aula, do que será vasculhar bibliotecas e construir a nossa versão. A corrente flui num sentido e é claro mais fácil deixarmo-nos ir.
 
A dedução mais óbvia é que qualquer tentativa em contrário representa um esforço consciente e, arrisco-me a dizer, anti-natura. Como a lei que forçou uma quota mínima de conteúdos portugueses nas rádios. Uma atitude estranha porque vai contra a prática colectiva, que se contesta porque levanta tantos ou mais problemas quantos os que resolve.
 
Mas não sejamos ingénuos: sem uma mudança de atitude, a promoção da Ficção Científica (& fantástico & policial & aventura & romance & tudo o que seja literatura marginal) não vai acontecer. E não sejamos hipócritas: não cabe (apenas) às editoras, (apenas) aos agentes culturais fazer o esforço. Cabe a todos. A culpa, neste caso, não é um pelotão de fuzilamento mas uma granada num espaço fechado: ninguém escapa.
 
É uma admissão difícil. Vai contra o princípio que defendo de deixar a mãe-natureza decidir o sobrevivente. A FC portuguesa, para existir, tem de ser tão boa ou melhor que o (melhor) que existe lá fora, tem de perceber, primeiro, que protocolos regem a leitura dos textos mais conceituados para depois imitá-los no melhor que puder e finalmente ultrapassá-los. Ou seja: adoptar antes de adaptar.
 
Mas não pode ficar por aí. A FC portuguesa tem de se ler a si mesma, e criticar-se violentamente.
 
E para isso acontecer, tem de estar disponível.
 
É por isso que encaro a iniciativa do projecto Adamastor como uma primeira salvação do género. De facto, não compete às instituições oficiais salvaguardar os interesses dos pequenos grupos, se estes não fizerem o esforço inicial de definir e delimitar o que constitui estes seus interesses. Uma das grandes vantagens do mundo online é de facilitar enormemente a realização de projectos desta natureza: coordenar esforços de revisão e recuperação de textos antigos com o intuito de criar uma base de entendimento e estudo sobre a matéria que agrada ao colectivo. Assim dispersos, o esforço e o custo tornam-se suportáveis — o mesmo já não seria possível pedir a uma editora (sem uma base de leitores que sustentasse o investimento) nem a um organismo público (que tem de satisfazer o discurso predominante, no qual a literatura de género fica para segundo plano).
 
Neste ponto, tenho de ser sincero e confessar — não obstante o contentamento pessoal por ter despertado, de algum modo, o início da ideia, e a admiração de a ver nascer e concretizar-se em algo real pela mão de uma equipa motivada — o meu desconforto quanto à selecção de obras feitas até agora. Como disse acima, vejo estes projectos como complementares a esforços institucionais e direccionados aos interesses dos pequenos grupos — interrogo-me se, ao escolher-se o que é precisamente conhecido, consensual e disponível (em livro) dos autores «canónicos», estaremos a aproveitar da melhor forma o grupo de trabalho reunido. É uma visão pessoal, mas aqui esperava encontrar precisamente os autores ignorados — as obras menos familiares ou mais inacessíveis dos autores conhecidos — os textos de género que se perderam no tempo (os romances de capa e espada do século XIX, as novelas românticas das primeiras décadas do século XX, e, sim, a Ficção Científica produzida daí em diante). Claro que há questões de direitos e acessibilidade das obras a ter em causa e outras questões práticas. E admito que esteja a ser ansioso, pois certamente que o projecto há-de lá chegar.
 
Seja como for, os meus votos de sucesso e a manifestação do meu apoio. Precisamos de mais iniciativas como esta, de maior vontade em recuperar a nossa memória. Quem nos recordará amanhã? Nadamos com força para que os rápidos não nos levem. Ignoro se a cascata está longe, mas a verdade é que a ouço, pelas costas, a soltar o rugido que coloca o ponto final em todas as histórias, e só espero que consigamos deixar testemunho antes que as águas nos calem.
 

Luís Filipe Silva é autor português de «O Futuro à Janela» (1991, Prémio Caminho de Ficção Científica), «Cidade da Carne (A GalxMente I)» e «Vinganças (A GalxMente II)» (ambos, Leya Caminho, 1993) e «Terrarium — Um Romance em Mosaicos» (com João Barreiros — Leya Caminho, 1996), além de vários contos, críticas e artigos em publicações portuguesas, brasileiras e internacionais. Como antologista, organizou «Vaporpunk — Relatos Steampunk Publicados sob as Ordens de Suas Majestades» (com Gerson Lodi-Ribeiro — Editora Draco, 2010) e «Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa» (com Luís Corte Real — Editora Saída de Emergência, 2011). A obra mais recente é a novela de springpunk, «In Falsetto», publicada na antologia «Mensageiros das Estrelas» (Fronteira do Caos, 2013).

1 comentário em “«Porquê Ler os Clássicos?» – Entrevista a Luís Filipe Silva”

  1. Quanto às escolhas que temos vindo a efectuar a nível de catálogo, são opções que se explicam facilmente. De início, a escolha de obras mais consensuais, mais conhecidas, permitiu-nos ultrapassar algumas barreiras (disponibilidade de digitalizações das primeiras edições, disponibilidade de texto editável e de edições críticas) e atrair um público mais vasto, o que, por sua vez, nos deu dados para avaliar o interesse por certos autores/géneros.

    Mesmo agora, passado mais de um ano da inauguração do projecto, o número de colaboradores não chega a uma dezena e, caso tivesse optado logo à partida por obras mais obscuras, é bem possível que fossem ainda menos.

    Em termos de disponibilidade, procuramos tratar obras que não estejam disponíveis gratuitamente em formato EPUB/MOBI. A grande maioria dos títulos disponíveis em formato digital estão em PDF, muitos deles pejados de erros ou ainda por actualizar a nível ortográfico, mesmo quando estamos a falar de autores mais reconhecidos como Eça ou Camilo.

    Finalmente, graças às edições críticas que temos vindo a consultar, estamos, lentamente, a debater os critérios de edição para chegarmos a um guia de edição pelo qual os colaboradores se deverão guiar no futuro.

    Não quer isto dizer que o objectivo de “ressuscitar” certas obras tenha sido abandonado. Até agora não houve grande progresso nesse sentido, é certo, mas é algo que deverá mudar ao longo deste ano. Recentemente editámos Os Canibais, de Álvaro do Carvalhal. Dentro em breve espero disponibilizar A Ruiva, de Fialho de Almeida. Quanto aos romances de capa e espada, por exemplo, estamos a ponderar tratar algumas das obras de Arnaldo Gama. Tratam-se, no entanto, de processos mais trabalhosos e dispendiosos, porque nalguns casos não existem digitalizações, o que nos obriga a requisitar uma reprodução da obra à BNP, assim como a respectiva autorização para utilizar o texto da mesma.

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