Porquê ler os clássicos da literatura portuguesa?
Enquanto leitores oferece-nos um conhecimento do que nos foi constituindo enquanto portugueses, de quem temos sido — e somos. É espantoso verificar como, nalgumas coisas, pouco mudámos. Como escritores oferece-nos também uma base sólida para a aprendizagem do bem escrever. E, em muitos casos, por puro prazer. Só não sei se ainda se lêem realmente, fora das obrigações escolares.
A definição de clássico está longe de ser consensual. Afinal, o que torna uma obra literária um clássico?
A resistência ao tempo, talvez. Ser reconhecida como relevante, pela forma ou pelo conteúdo, muitos anos depois da sua publicação, mesmo que na sua época não o tenha sido. É provável que reúna um conjunto de características que a tornam exemplo de um certo estilo ou corrente que quebra convenções anteriores… mas é sem dúvida o rolar dos anos que nos permite distinguir entre os entusiasmos coevos e o clássico.
Eça e Pessoa continuam a ser bastante lidos, mas nem todos tiveram tal sorte. Que autor português considera que foi imerecidamente votado ao esquecimento?
Não vou presumir um conhecimento de uma panóplia de autores de cada época, até porque para mencionar nomes que são pouco lidos e mereciam sê-lo um pouco mais não é preciso pensar muito. Li muitos autores clássicos enquanto crescia — os mais tradicionais, Eça, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis, Garrett, por exemplo — e muitos outros mais tarde, Antero de Quental, Ramalho Ortigão, António Nobre, Camilo Pessanha, Teixeira de Pascoaes, Cesário Verde… nomes de que, depois de concluída a minha formação académica, pouco ouvi falar. Não foram esquecidos, mas estão em segundo plano, por vezes terceiro, e creio que a generalidade da população não lhes conhece o nome e menos ainda os textos.
«Prognósticos só no final do jogo», mas que obra contemporânea lhe parece capaz de vencer o teste do tempo e vir a integrar o cânone literário português?
Não estou certa se a actual dimensão e mobilidade do Mercado e a proliferação de obras de tantos autores — uns bons, outros nem tanto — em tantos suportes permitirá a alguns que passem o crivo do tempo e dessa espécie de selecção natural, que não sei se tem muito de natural, das obras no interesse do público ou de quem forma o publico e define o que é ou não interessante. Gostaria de pensar que dois ou três nomes para além de Saramago — ou Saramago já é um clássico, mesmo sendo contemporâneo? — resistirão ao desgaste rápido do mundo actual.
O mercado do livro digital começa agora a desenvolver-se no nosso país. Vê este novo formato como uma oportunidade, ou como uma ameaça à literatura tal como a conhecemos?
Não creio que seja uma ameaça, mas uma forma complementar de leitura. Gosto muito do livro, a textura, a imagem, até o cheiro, mas reconheço a facilidade de manuseamento dos leitores digitais e, como leitora, acho-os muito fáceis de ler. Não me perturba nada ler assim. Como escritora, estando neste momento associada a uma editora destes livros, tenho que desejar que seja essencialmente uma oportunidade. Pode sê-lo, num mercado que se fecha cada vez mais e acaba por restringir a publicação ao que não pode falhar as vendas, ou seja, fecha-o às novidades que são sempre arriscadas.
Carla M. Soares nasceu em 1971, em Moçâmedes, no Namibe. De lá, trouxe escassas memórias e a viagem no corpo.
Formou-se em Línguas e Literatura em Lisboa, tornou-se professora, mestrou em Literatura Gótica e Film Studies e estudou História da Arte num doutoramento incompleto.
Filha, mãe, mulher, amiga, leitora e escritora compulsiva, viaja pelas letras desde sempre.