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Os Meus Amores — Trindade Coelho

Nesse dia, os dois pequenitos tinham jurado que haviam de ir ao rio. Assim eles tivessem uma coisa boa!… Mas que tentação para ambos, o rio! Ainda lhes soavam aos ouvidos, com todo o seu entono vibrante de ameaça, aquelas terríveis palavras com que a mãe os intimidara, um dia que lhe apareceram em casa tarde e às más horas.
 
― Ouvistes? ― ralhara-lhes a mãe. ― Olhai se ouvistes! Se voltais ao rio, mato-vos com pancada! Andai lá…
 
Ih! como ela dissera aquilo, Mãe Santíssima! Colérica, ameaçadora, com a mão em gume sobre as suas cabecitas loiras… Lembravam-se de haver tremido, cheios de susto, muito chegados um ao outro, humildes sob aquela ameaça terminante. E então, nesse dia, eles não tinham ido ao rio. Aos pássaros, sim… ― lá estavam as calças rotas do Manuel a dizê-lo ― … aos pássaros é que eles tinham ido. Ao rio era bom! a mãe que o soubesse…
 
Ah, mas então não os deixassem dormir naquele quarto! Logo de manhã, mal abriam as janelas, a primeira coisa que viam era o rio, uma corrente muito lisa e esverdeada, serpeando entre os renques baixos dos salgueiros. Lá estava a ponte velha, donde os rapazes se atiravam despidos, de cabeça para baixo, e então o barquinho branco do fidalgo, ― lindo barquinho! ― sempre à espera que o fidalgo o desamarrasse para passar à grande quinta que tinha na margem de lá.
 
De modo que o primeiro desejo que logo pela manhã assaltava os dois rapazes era o de irem por ali abaixo, muito madrugadores, tão madrugadores como os melros, meterem-se dentro do barco, desprendê-lo da praia, e deixá-lo ir então por onde ele quisesse, contanto que fosse sempre para diante… Quando fechavam as janelas para se deitar, a sua vista seguia, mesmo através da escuridão da noite, a linha que ia dar ao barco. Era o seu ― «adeus até amanhã!» ― àquele pequeno objecto que valia tesouros, que para os dois valia mais que tudo, tudo…
 
Ah! tivessem eles assim um barquinho, que não queriam mais nada…

Título: Os Meus Amores
Autor: Trindade Coelho
Data Original de Publicação: 1891
Data de Publicação do eBook: 2018
Imagem da Capa: Milheiral, de Carlos Reis
Revisão: Ricardo Lourenço e Cláudia Amorim
ISBN: 978-989-8698-36-0
Texto-Fonte: Os Meus Amores. Paris-Lisboa: Livraria Aillaud & C.ª, 1901.

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