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O Alienista — Machado de Assis

Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de circunspecção até o pescoço.
 
— Estou muito contente — disse ele.
 
— Notícias do nosso povo? — perguntou o boticário com a voz trêmula.
 
O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu:
 
— Trata-se de cousa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha idéia; nem a ciência é outra cousa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da Terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.
 
Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou compridamente a sua idéia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na história e em Itaguaí; mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguaí, e refugiou-se na história. Assim, apontou com especialidade alguns personagens célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridículas. E porque o boticário se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma cousa, e até acrescentou sentenciosamente:
 
— A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério.
 
— Gracioso, muito gracioso! — exclamou Crispim Soares levantando as mãos ao céu.

Título: O Alienista
Autor: Machado de Assis
Data Original de Publicação: 1882
Data de Publicação do eBook: 2018
Imagem da Capa: Auto-retrato de Luke Fildes
Revisão: Ricardo Lourenço e Cláudia Amorim
ISBN: 978-989-8698-54-4
Texto-Fonte: Papéis Avulsos. Rio de Janeiro: Lombaerts & Cia, 1882.

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