Chove. Cada vez vejo mais turvo, cada vez tenho mais medo. Estamos enterrados em convenções até ao pescoço: usamos as mesmas palavras, fazemos os mesmos gestos. A poeira entranhada sufoca-nos. Pega-se. Adere. Há dias em que não distingo estes seres da minha própria alma; há dias em que através das máscaras vejo outras fisionomias, e, sob a impassibilidade, dor; há dias em que o céu e o inferno esperam e desesperam. Pressinto uma vida oculta, a questão é fazê-la vir à supuração.
Esta manhã de chuva é um minuto no rodar infinito dos séculos, e os seres que passam meras sombras. Tudo isto me pesa e pesa-me também não viver. Do fundo de mim mesmo protesto que a vida não é isto. A árvore cumpre, o bicho cumpre. Só eu me afundo soterrado em cinza. Terei por força de me habituar à aquiescência e à regra? Crio cama, e todos os dias sinto a usura da vida e os passos da morte mais fundo e mais perto.
Título: Húmus
Autor: Raul Brandão
Data Original de Publicação: 1917
Data de Publicação do eBook: 2020
Imagem da Capa: Das Schweigen, de Johann Heinrich Füssli
Revisão: Ricardo Lourenço, Cláudia Amorim e Laura Natal
ISBN: 978-989-8698-22-3
Texto-Fonte: Húmus. Lisboa: Livrarias Aillaud & Bertrand, 1926.
O livro Húmus está incompleto. Falta-lhe a última parte.
Bom dia, Alexandre. «Húmus» foi revisto várias vezes pelo autor, existindo três versões distintas da obra. Na nossa edição resolvemos adoptar o texto da terceira edição, de 1926.
Entendi. Muito obrigado pela explicação e pelo livro.