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«Eça de Queirós revelado por uma ilustre senhora de sua família (Parte III)», por Conceição Eça de Melo

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Eça de Queirós, por Rafael Bordalo Pinheiro

POETAS E ESCRITORES NA INTIMIDADE

Eça de Queirós revelado por uma ilustre senhora de sua família e íntimas relações — a distinta escritora D. Conceição Eça de Melo.

 
Como já disse, Eça de Queirós trabalhava sem se sentar à mesa.
 
O que pela primeira vez lançava ao papel era depois muitas vezes emendado, e até mesmo nas primeiras provas algumas vezes completamente refundido.
 
É que no grande espírito do romancista havia uma verdadeira sede de perfeição, e o seu ideal artístico era tão levantado que raras vezes o trabalho o atingia na primeira forma.
Depois da sua morte algures vi escrito não ter o mestre espontaneidade, e o seu trabalho moroso só com dificuldade produzir.
 
Que deplorável confusão!
 
Eça de Queirós compunha, criava com grande facilidade, mas, saída a estátua do bloco, o artista apaixonado pela forma retocava-a até lhe sair das mãos perfeita. Era esse trabalho, ao qual chamarei complementar, que lhe levava tempo infinito, e tornava morosa a finalização de qualquer obra. A fabulação de um conto, de um romance, essa criava-a completa um lampejo do seu génio. Quantas vezes até a conversar isso acontecia! A sua palavra quente, colorida, fazia surgir ante os nossos olhos deslumbrados uma criação perfeita. Lembro-me ter-se dado um desses factos uma noite, em Neully. A conversa corria ligeira, borboleteando de um para outro assunto, quando, não me lembra quem, aceitou falar na rua Auber.
 
— Nunca esqueço essa rua, disse Eça de Queirós, levantando-se, — foi aí que uma noite encontrei a morte.
 
— ?!!
 
— Sim, respondeu prontamente ao nosso gesto interrogativo, e começou narrando como, voltando da Ópera para a rua Auber, dera de cara com uma mulher alta, esquelética envolta numas roupas negras.
 
A história era simples e poderia resumir-se em poucas palavras; mas o romancista acordara, e muito naturalmente narrou-nos a aventura. Um interessante conto à Hoffmann que nos teve suspensos dos seus lábios e nos fez passar à flor da pele o delicioso arrepio de terror.
 
Parece-me ser isto sobeja prova de que Eça de Queirós não precisava de longo tempo para arquitectar uma situação, ou criar uma personalidade.
 

*

 
A respeito de Racine tem-se dito e escrito tudo quanto razoavelmente se pode dizer e escrever, mas esse aturado estudo tem incidido mais sobre o homem do que sobre o escritor.
 
As suas relações de amizade, os seus amores, o valimento que teve com os grandes da sua época, os reveses sofridos nesse valimento e amizades, enfim, tudo quanto pode tornar conhecido o homem e o seu tempo, tem sido estudado com escrúpulo, analisado cuidadosamente e patenteado ao público de forma que o conhecemos hoje como se connosco tivesse vivido.
 
Isto enquanto ao homem, não acontecendo porém o mesmo se falamos do escritor.
 
A sua obra ainda hoje é interpretada tão diversamente como quantos são os leitores.
 
Seria mesmo curioso compendiar as opiniões de todos os seus críticos, e tirar da reunião de todas essas análises um largo estudo da obra do poeta.
 
Querem alguns que a obra de Racine seja o resultado da sua fé religiosa. Efectivamente, bem estudado o homem, cuidadosamente perscrutado o seu sentir religioso, essa opinião impõe-se.
Racine era jansenista, e o jansenismo cifra-se na luta da vontade contra as paixões, sendo a primeira sempre vencida.
 
G. Larroumet, o escritor que talvez melhor tem estudado a obra de Racine, é dessa opinião, e alguns dos seus argumentos parecem-me concludentes:
 
O jansenismo, diz ele, tem o seu ponto de partida no dogma do pecado original: a natureza humana viciada pela culpa dos nossos primeiros pais é fundamentalmente má. Deus vindo ao mundo resgatou essa falta original, mas para que o homem se salve é preciso que a graça venha em auxílio da purificação do baptismo; mas a graça é difícil de obter, e Deus dá-a a quem quer, sendo o número dos eleitos limitado.
 
Jansenius não admitia que o homem pudesse pela força da vontade vencer as suas paixões; daí a negação do livre arbítrio.
 
As heroínas de Racine, mais humanas do que as de Corneille, todas são vencidas pela paixões:
 
Oreste e Hermione não são maus, mas a paixão do amor leva-os ao assassínio, à loucura e ao suicídio. Nero é mau; a paixão torna-o feroz. Fedra luta valentemente contra o amor que a assoberba, mas falta-lhe a graça e sucumbe.
 
A obra de Racine só agora começa a ser estudada, não digo no seu valor literário, que esse de há muito lhe era reconhecido, mas no seu valor documental, que por muito tempo lhe foi negado.
 
O grande poeta foi por muitos tomado apenas por um maravilhoso cantor do amor, uma espécie de rouxinol, só bom a deliciar os ouvidos.
 

*

 
Eça de Queirós fez parte de uma plêiade de talentos a quem as novas formas de literatura deslumbrou.
 
Charles Baudelaire era o pontífice dessa nova igreja literária, e os devotos eram todos espíritos de primeira plana a quem anos depois o estudo, o convívio, a sã apreciação dos factos e dos homens, tornou mais transigentes.
 
Charles Baudelaire era chamado o poeta satânico, e Eça de Queirós ainda há poucos anos nos Ecos de Paris dizia, referindo-se a essa época «… Nesse tempo todos nós éramos satânicos».
 
Os admiradores dos novos processos literários punham de parte as antigas tragédias, não admitindo que pudesse haver beleza onde não havia verdade. Uma cena violenta de amor ou ódio, passada entre duas pessoas, que, por muito excitadas que se achassem não omitiam as regras cerimoniosas, e pareciam sempre recear, amarrotar os punhos de renda, ou desmanchar os caracóis da cabeleira, era coisa tão convencional que, aqueles jovens espíritos apaixonados pela verdade, pela arte na realidade da vida, recusavam-se a estudar os que os tinham precedido usando de outros processos.
 
Anos depois muitos arrepiaram caminho, não transigindo com as antigas formas para segui-las, mas concedendo admiração ao que era para admirar.
A respeito da antiga intransigência, ouvi a Eça de Queirós contar uma anedota que tem aqui seu lugar e bem prova que para o verdadeiro talento não há completa intransigência:

«Tous les genres sont beaux

Or le genre ennuyeux.»

Eça de Queirós desde muito novo fora amigo de Carlos Mayer. Apreciava como conhecedor o seu original talento, o seu espírito, e essa admirável qualidade de bom conversador que Mayer possuía em alto grau.
 
Nunca Eça de Queirós estava em Lisboa sem repetidas vezes visitar o amigo, e Carlos Mayer quando estava em Paris raro dia deixava de ir a Neully.
 
Está decerto ainda na memória de todos que bom actor foi Carlos Mayer.
 
A sua dicção era perfeita e, como a sua alta inteligência o fazia entrar completamente no espírito do autor, ouvi-lo ler um grande mestre era um verdadeiro prazer espiritual, pois nem uma intenção, por ligeiramente que fosse manifestada, nem sentimento, por fugitivo que fosse, lhe passava despercebido.
 
Um dia Eça de Queirós dirigia-se a casa de Carlos Mayer quando encontrou Ramalho Ortigão.
 
Seguiram os dois conversando, e quando chegaram a casa de Mayer iam falando de Racine e Corneille que ambos achavam maniérés sem paixão, e sobretudo sem verdade, nem sentimento.
 
— É tudo o que há de mais convencional — diziam — já então no escritório de Mayer, que não concordando com essa maneira de ver foi buscar as obras de Racine e começou a ler uma das imortais tragédias do grande poeta.
 
Como já disse, Mayer lia como pouca gente lê, e os dois ouvintes eram dignos do leitor.
 
Sob o encanto daqueles belos versos declamados, como talvez nunca o tivessem sido, Ramalho e Eça de Queirós já não se lembravam das suas teorias avançadas, e sem pensarem, sem o sentirem transportavam-se para aquele mundo descrito pelo poeta, e tanto se colocavam no ponto de vista dele que sentiam o que ele sentira, e quando Mayer fechou o livro os dois tinham os olhos marejados de lágrimas.
 
Estava feita a conquista.
 
Daí em diante, Eça de Queirós que, nas coisas literárias como nas da vida de todos os dias, tinha até ao exagero, se exagero pode haver, o sentimento da probidade, começou a estudar conscienciosamente os dois grandes poetas do século de Luís XIV.
 
Não mereceria contado este pequeno facto se ele não devesse ser, para aqueles que não conheceram Eça de Queirós senão através da sua obra, a revelação do seu carácter íntimo.
 
Nunca homem de letras foi tão sincero na sua maneira como o autor das «Cidades e Serras».
 
Se um livro, um artigo, uma poesia, o impressionavam, francamente o dizia, e se o autor era um novo, um nome ainda ignorado do público, ele procurava fazê-lo conhecido, repetia o seu nome, dava-lhe enfim o apoio da sua incontestável autoridade.
 
— Se o talento de Eça de Queirós era do mais alto quilate, o carácter era diamantino.
 

Conceição Eça de Melo


Terceira e última parte do artigo de Conceição Eça de Melo, originalmente publicada na revista Alma Nova, Série II, Abr. 1916 N.º 4 (16, [17, 18]) (Ficha histórica).

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