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«Eça de Queirós revelado por uma ilustre senhora de sua família (Parte I)», por Conceição Eça de Melo

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Eça de Queirós, por Rafael Bordalo Pinheiro

POETAS E ESCRITORES NA INTIMIDADE

Eça de Queirós revelado por uma ilustre senhora de sua família e íntimas relações — a distinta escritora D. Conceição Eça de Melo.

 
Pedindo-me os directores da Alma Nova para revelar aos seus leitores a personalidade íntima do grande escritor que foi Eça de Queirós, decerto só tiveram em conta que essas recordações, do amigo e parente a quem vi morrer a 16 de Agosto de 1900, seriam ditadas pelo coração, e escritas à luz da mais enternecida saudade.
 
Não é, pois, um estudo crítico à obra do grande mestre que vou deixar nas páginas desta revista, que os seus directores querem iniciar prestando homenagem ao grande romancista português, que, mau grado tantos que ainda hoje o invejam, enriqueceu as letras pátrias com inestimáveis jóias.
 
Não é, como já disse, um estudo crítico à sua obra, mas apenas o perfil do mais original espírito, da mais bela individualidade moral, cujo encanto só aqueles a quem foi dado viver na sua intimidade puderam bem avaliar.
 
Eça de Queirós nasceu na Póvoa de Varzim e passou a sua primeira infância na casa familial (perdoe-se o anglicismo) paterna, onde então só vivia a sua avó.
Era situada essa casa em Verde-Milho, povoação nos subúrbios de Aveiro.
 
A avó, já bastante idosa, adorava o neto: criara-o de pequenino, e para as avós os netos são como um renovo do coração, um raio de sol que atravessa as pesadas nuvens da tristeza, e quantas vezes do abandono, e vem bater nos gelos da velhice irisando-os com as alegres cores da felicidade.
 
Nessa amimada primeira infância, de que o romancista guardava no fundo do coração uma enternecida memória, a sua inteligência era já de notar.
 
Aprendeu as primeiras letras e fez esses primeiros estudos, ordinariamente tão fastidiosos, que hoje a pedagogia tem procurado aligeirar, mas que, naquele tempo, eram para os espíritos infantis um verdadeiro pesadelo, com incrível facilidade.
 
Quando tinha dez ou doze anos morreu-lhe a avó, e seus pais, José Maria Teixeira de Queirós e D. Carolina Augusta Pereira de Eça, descendente do príncipe D. Fernando, cujo solar era a casa de Eça em Monsão1, que de há muito ansiavam por tê-lo junto a si, trouxeram-no para o Porto e decidiram fazê-lo continuar os seus estudos no colégio da Lapa, do qual era director Joaquim da Costa Ramalho.
 
Nesse colégio leccionava então o filho do director, José Duarte Ramalho Ortigão, que em breve se afirmava um grande escritor.
 
Ainda há pouco a morte o levou, acompanhado pela saudade de todos que o conheceram, e o admiravam como vulto de primeira ordem na literatura portuguesa.
 
Ramalho, então muito novo, mas já homem, logo distinguiu entre os discípulos aquele rapazito de extraordinária aplicação, sabendo sempre achar a expressão própria e espirituosa para castigar uma ousadia, ou estigmatizar um sentimento pouco nobre.
 
O seu olhar fino e inteligente, o seu irónico sorriso revelaram desde logo, ao que depois seria seu amigo íntimo e seu colaborador, que ali, naquele corpo franzino de criança vivia um grande espírito.
 
Mestre e discípulo simpatizaram e, apesar da diferença de idade, tornaram-se amigos, com essa forte e viril amizade que torna irmãos pela secreta afinidade intelectual e moral, dois homens às vezes nascidos em pontos muito distantes.
 

*

 
Terminados os preparatórios, cursou em Coimbra a faculdade de Direito, e aos vinte e um anos, terminado o curso, voltava a Lisboa aonde seu pai viera fixar residência, e onde desejava vê-lo advogar.
 
Bem queria Eça de Queirós comprazer com o pai, mas as borboletas, flores aéreas, não podem rastejar na terra; precisam do ar, da luz, das alturas para encontrarem a plenitude da felicidade.
 
Ele, com a sua alma de poeta, com a sua brilhante imaginação, acompanhada de uma rara faculdade de observação, ansiava por uma vida mais intensa, e por uma cena mais vasta do que a que lhe proporcionaria um escritório de advogado na nossa tão linda, mas tão pequena cidade de Lisboa.
 
Decidiu-se pela carreira consular, e, preparando-se para o concurso, tão brilhante o fez que na secretaria dos estrangeiros o davam como modelar.
 
Já então no rapaz estudioso surgira o literato, e de parceria com Ramalho fundara a publicação intitulada As Farpas, crónica mensal da política, das letras e dos costumes.
 
O que foi essa publicação está ainda na memória de todos. Durou talvez cinco anos, e fez época em Lisboa, e até mesmo no estrangeiro onde mais de uma vez jornalistas notáveis se lhe referiram com palavras de justo louvor.
 
As Farpas foram em Lisboa, o que tinham sido em Paris Les Guêpes, de Alphonse Karr, mas com mais verve, mais espírito, e sobretudo com mais fina observação crítica.
 
Os seus dois directores eram dois ironistas de uma graça inigualável, elegante, leve, sem chocarrices nem plebeísmos. Seja porém dito, com verdade, por ser fina e leve, nem por isso deixava de ferir certo e fundo aqueles a quem punha em foco.
 
Eça de Queirós publicou também por essa época, creio que um ano antes, e também de colaboração com Ramalho Ortigão, o seu primeiro romance: O Mistério da Estrada de Sintra que viu a luz em folhetins no Diário de Notícias e produziu em Lisboa uma verdadeira revolução.
 
Há nas descrições daquele bem feito romance tanta verdade, são tão vívidas as cenas, que a princípio se julgou um facto sucedido o que só era fruto da imaginação dos autores, e muita gente se apavorou com a extraordinária tragédia.
 
Eu estava então fora de Lisboa, na província da Estremadura. Alguém me falou no sinistro caso, do qual, diziam, a polícia ia inquirir. Quis ver o jornal. Trouxeram-mo. Li-o, sorri-me e disse a quem mo mostrava.
 
«— Não se assuste, isto é um romance escrito pelo Eça de Queirós.»
 
Conhecera-lhe a maneira, sempre inconfundível.
 

*

 
Antes do seu concurso foi nomeado administrador do concelho de Leiria, para cumprir a cláusula da lei que só admitia ao concurso para cônsul quem tivesse pelo menos seis meses de serviço público.
 
Foi em Leiria que escreveu O Crime do Padre Amaro, no qual os malévolos quiseram ver um plagiato do romance de Zola, La Faute de lʼAbbé Mouret, o que só pode dizer quem não tiver lido com atenção nenhum dos dois romances.
 
Pertencem à mesma escola, são igualmente grandes os seus autores, mas a única semelhança entre os dois livros cifra-se em serem padres os heróis de cada um deles.
Para plagiato é pouco.
 
O Crime do Padre Amaro é um estudo da vida beata provinciana, pris sur le vif.
 
É a vida da província portuguesa, em um meio burguês, estudada tão conscienciosamente, com uma tal delicadeza de observação, que cada um dos capítulos do belo romance é um cliché.
 
Em toda a vasta obra de Eça de Queirós há muito que aprender, mas o estudo é difícil, não porque ela seja fragmentária, mas porque o escalpelo de que ele se serve desce tão fundo e a mão que o segura é tão firme que, para bem apreciar o trabalho do romance, é preciso conhecer bem o meio que ele analisa. Quem o não conhece julga exagero o que é na verdade só probidade literária.
 
Dos autores contemporâneos, um dos que mais admirava era Flaubert, de quem nos Ecos de Paris diz ser «um poderoso artista, um dos maiores deste século».
 
Havia entre eles, além de outras afinidades, essa da probidade literária, tão exagerada, que lhes não permitia descrever uma paisagem, uma terra, um meio, que o não conhecessem de visu. Muitas vezes ouvi Eça de Queirós quase lastimar-se dessa bela qualidade de escritor que lhe não permitia um trabalho rápido. Também Flaubert procedia assim. Madame Bovary levou-lhe três anos a escrever, Salammbô quase cinco, e o incomparável LʼEducation Sentimentale dez!
 
Muitos não souberam compreender esta, enquanto a mim qualidade, — a que chamaram defeito; — mas a esse defeito, se o era, chamarei um feliz defeito de artista, porque era o complemento daquele precioso trabalho de observação de que são enriquecidos cada um dos seus livros.
 

*

 
Nomeado cônsul para a Havana, para lá partiu, voltando algum tempo depois a Portugal, para, acompanhado pelo conde de Resende, Luís, empreender uma viagem à volta do mundo.
 
Por lá se demoraram, não me lembra ao certo quanto tempo, mas dessa viagem, feita com o amigo que depois seria seu cunhado, guardava o mestre agradáveis recordações.
 
Pouco tempo depois do regresso a Portugal, foi transferido para Bristol, e de lá veio ao Porto para casar com uma irmã do conde de Resende, linda, como sabem ser lindas as mulheres portuguesas.
 
Emília de Castro Pamplona, de uma beleza suave, dotada de suprema distinção, é uma criatura de sonho, um ente feito de encanto.
 
Dos seus belos olhos, retratando a mais bela alma, irradia a inteligência, sente-se que há ali uma individualidade muito superior ao vulgar das mulheres, e que ela é bem aquela que, de todo o sempre, devia ter sido destinada para o homem excepcional, que foi José Maria Eça de Queirós.
 
O grande romancista amava-a com uma profunda afeição, com um desses afectos feitos de ternura e admiração, que são para a mulher a mais luminosa coroa de glória, quando as inspira a um homem de valor e gosto do autor do livro A Cidade e as Serras.
 
Pai de quatro filhos, três rapazes e uma senhora, não teve a felicidade de os ver crescer, e de se orgulhar da galhardia deles e da fresca e viçosa beleza da filha.
Em Inglaterra viveu o romancista o seu noivado e ainda alguns anos mais.
 
Passavam os dois muitos meses na sua casa de Bristol, e vinham estar a season a Londres aonde os chamavam os prazeres da vida elegante.
 
Eduardo VII, então príncipe de Gales, apreciava o convívio de Eça de Queirós e o honrava chamando-lhe amigo.
 
De Bristol foi Eça de Queirós transferido para Paris, onde viveu até 16 de Agosto de 1900, em que a morte impiedosa o veio buscar, quando ainda tanto havia a esperar do seu pujante talento.
Da sua vida em Paris falarei aos leitores no próximo número.

20-10-1915, Conceição Eça de Melo

1 Vide – Colecção Pombalina. Colecção dos manuscritos: Eças.


Originalmente publicado na revista Alma Nova, Série II, n.º 14 (Ficha histórica).

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